doutor do interior. Graciliano Ramos. Jun 11, 1933. Substantivo. /dowˈtoʁ du ĩteɾiˈoʁ/. Intelectual inflado e isolado, que, por falta de interlocutores e pela expectativa de onisciência da comunidade, instrumentaliza seu conhecimento de forma superficial e dogmática, tornando-se um "charlatão" que usa artifícios verbais para sustentar uma autoridade incontestável e inatingível na comunidade. Category: Artista. Cotext: "Aqui na capital os doutores são indivíduos quase como os outros: vestem-se como todo mundo, falam como todo mundo, é possível a gente desprevenida passar junto a eles sem perceber nenhum sinal que os denuncie. [...] Os do interior são muito diferentes deles. Dogmáticos, eriçados, carrancudos. A diferença explica-se. O bacharel, o médico ou o engenheiro que mora na cidade encontra frequentemente, dentro da sua classe ou fora dela, homens sabidos. Daí uma aproximação, uma familiaridade útil a todos. No interior não é assim. O rapaz que salta da academia para a roça sente-se isolado. Vai com a cabeça cheia de fórmulas, algum pensamento e muito bons desejos: quer abrir uma escola, criar o horrível grêmio literário, fundar um desses pequeninos jornais onde os talentos cambembes engatinham. Mas só percebe em redor brutalidade e chatice. O pensamento e os desejos encolhem-se. [...] Para ele qualquer doutor tem obrigação de saber fazer tudo: requerimentos, defesas no júri, correspondências para o jornal, demarcações de terra, extração de dentes, eleições, orçamentos municipais e receitas de remédios. Assim, o letrado oficial que vive em cidade pequena, se não quer passar por ignorante, entrega-se a ocupações numerosas. Torna-se um charlatão. [...] Muita arrogância e uma frase latina: dura lex sed lex ou outra. Se o latim falha, agarra-se ao francês. Os roceiros ficam embasbacados. E o doutor triunfa. Depois que arranja um conceito regular, fala pouco para não se comprometer: sorri, gesticula. É, naturalmente, o consultor da povoação onde reside. Se lhe fazem pergunta difícil, evita o obstáculo usando expressões arrevesadas. Esquece as fórmulas que trouxe da Academia, mas os fragmentos de algumas ficam, inúteis e sempre repetidos, a adornar-lhe os restos do espírito. Admira os personagens consagrados pelo artigo de fundo, tem horror à poesia sem rima, acata o governo e a oposição, gosta do progresso e de dois em dois anos manda fazer uma roupa de casimira e torna-se importantíssimo. Escrevendo arrazoados, examinando doentes ou fabricando xaropes, emprega José de Alencar, Rui Barbosa, Castro Alves e Euclides da Cunha. O matuto baba-se por ele, e quando é rico, tenta casá-lo com uma filha, que o grande desejo do tabaréu é ter um parente doutor. Busca tratá-lo familiarmente, mas isto é impossível. Julga-se muito pequeno. Dirigindo-se a ele, diz senhor; ele, em resposta, diz você. [...] É esse doutor, parlapatão e ignorante, que domina as cidadezinhas do interior. Lá não há livros, e os jornais, raros, servem para se embrulhar sabão, nas bodegas.". Reference: Ramos, G. Garranchos. Rio de Janeiro: Record, 1984. 378p. p. 129-132.